Enterrando a Nakba: Como Israel esconde, sistematicamente, evidências da expulsão de árabes em 1948

Reportagem de Hagar Shezaf publicada no jornal israelita Haaretz, a 5 de julho de 2019,

traduzido pela Missão Diplomática da Palestina em Lisboa.

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Nota sobre a reportagem e a sua tradução:

Esta reportagem revela detalhes muito importantes sobre o processo sistemático levado a cabo por Israel, na tentativa de esconder e apagar todas as referências da catástrofe palestiniana, a Nakba de 1948, assim como quaisquer provas dos massacres e crimes de guerra cometidos na altura. Este processo revela-se pela obrigatoriedade do sigilo e confidencialidade impostos nos diversos documentos históricos relacionados com 1948. Centenas de documentos foram, escondidos como parte deste esforço sistemático de ocultação de provas.

Não obstante da sua grande importância, esta reportagem fornece muito poucos factos novos relativos aos massacres planeados e cometidos de forma sistemática pelos gangues sionistas contra palestinianos. Dados estes que já foram provados por muitos historiadores palestinianos e israelitas. O cerne deste artigo reside na discussão sobre o futuro dos documentos que comprovam a Nakba e os seus detalhes.

É importante mencionar, que esta discussão foi realizada dentro da sociedade israelita. Como tal, pouco se refere à necessidade de apresentar criminosos a julgamento, centrando-se apenas numa discussão israelita interna sobre a falta de democracia e transparência dentro de Israel.

Existe nesta reportagem um certo discurso de normalização e banalização dos massacres, até mesmo nas passagens que retratam confissões.

No entanto, a Missão Diplomática da Palestina, mesmo tendo todas estas reservas em consideração, tomou a decisão de traduzir e distribuir esta reportagem pela grande importância acima mencionada.

Levando em conta o anteriormente referido, a Missão Diplomática da Palestina não se identifica com muitos dos termos utilizados nesta reportagem, como por exemplo “fuga” ou “emigração em massa da população árabe”, achando mais correcto e verdadeiro dizer-se “expulsão dos palestinianos”, da mesma forma que também discorda da utilização de “Guerra da Independência” ao invés de “Nakba”.

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 Desde o início da década passada, as equipes do Ministério da Defesa têm vasculhado arquivos locais e removido documentos históricos para ocultar provas da Nakba.

Há quatro anos, a historiadora Tamar Novick ficou chocada com um documento que encontrou no arquivo de Yosef Waschitz, do Departamento Árabe do Partido Mapam de esquerda, parte do arquivo Yad Yaari, em Givat Haviva. Este documento, que parecia descrever eventos ocorridos durante a guerra de 1948, começa assim:

 “Safsaf [antiga aldeia palestiniana perto de Safed] – 52 homens foram apanhados, amarrados uns aos outros, um buraco foi cavado e foram baleados. 10 estavam ainda a contorcer-se. As mulheres vieram, implorando por misericórdia. Foram encontrados corpos de 6 homens idosos. Havia 61 corpos. 3 casos de violação, um deles a leste de Safed de uma menina de 14 anos. 4 homens foram baleados e mortos. A um deles foram-lhe cortados os dedos com uma faca para tirar o anel.”

 O autor continua a descrever mais massacres, assaltos e abusos perpetrados pelas forças israelitas na Guerra da Independência de Israel. “Não há nome no documento e não está claro quem está por trás do mesmo”, diz Novick ao Haaretz. “Também está interrompido a meio. Achei-o muito perturbador. Percebi que ao encontrar um documento como este, fico com a responsabilidade de esclarecer o que aconteceu.”

 A vila de Safsaf, na Alta Galileia, foi tomada pelas Forças de Defesa de Israel na Operação Hiram no final de 1948. A Moshav Safsufa foi fundada nas suas ruínas. Alegações de que a Sétima Brigada cometeu crimes de guerra na aldeia foram feitas ao longo dos anos. Essas acusações são apoiadas pelo documento que Novick encontrou, que não era conhecido pelos investigadores. Poderia também ter constituído prova adicional de que os superiores israelitas sabiam exatamente o que estava a acontecer em tempo real.

 Novick decidiu consultar outros historiadores sobre o documento. Benny Morris, cujos livros são indispensáveis no estudo da Nakba – a “calamidade”, como os palestinianos se referem à emigração, em massa, de árabes do país durante a guerra de 1948 – disse-lhe que também ele tinha encontrado documentos semelhantes no passado. Morris referia-se às notas escritas pelo membro do Comité Central da Mapam, Aharon Cohen, com base numa informação dada em novembro de 1948 por Israel Galili, ex-chefe de gabinete da milícia Haganah, que se transformou em Força de Segurança Israelita. As notas de Cohen, neste caso publicadas por Morris, afirmavam: “Em Safsaf: 52 homens amarrados com uma corda. Atirados num buraco e baleados. 10 pessoas foram mortas. As mulheres pediram misericórdia. Houve 3 casos de violação. Apanhados e libertados. Uma menina de 14 anos foi violada. Outros 4 foram mortos. Anéis tirados com facas.”

 A nota de rodapé de Morris (no seu importante livro “O Nascimento do Problema dos Refugiados Palestinianos, 1947-1949”) afirma que este documento também foi encontrado no Arquivo Yad Yaari. Mas quando Novick voltou a examinar o documento, ficou surpreendida ao descobrir que este já não estava lá.

Refugiados da Palestina inicialmente deslocados para Gaza, a entrar em barcos com destino ao Líbano ou Egipto, em 1949. Hrant Nakashian / 1949 Arquivos das Nações Unidas.
Refugiados da Palestina inicialmente deslocados para Gaza, a entrar em barcos com destino ao Líbano ou Egipto, em 1949. Hrant Nakashian / 1949 Arquivos das Nações Unidas.

 “No início, pensei que talvez Morris não tivesse sido preciso na sua nota de rodapé, que talvez ele tivesse cometido um erro”, lembra Novick. “Demorei algum tempo até considerar a possibilidade de que o documento tivesse simplesmente desaparecido.” Quando perguntou aos responsáveis onde estava o documento foi informada de que este teria sido trancado à chave no Yad Yaari, por ordem do Ministério da Defesa.

 Desde o início da última década, as equipes do Ministério da Defesa têm vasculhado os arquivos de Israel e retirado documentos históricos. No entanto, não são apenas os documentos relacionados com o projeto nuclear israelita ou com as relações externas do país que estão a ser transferidos para os cofres. Centenas de outros documentos foram, também, escondidos como parte de um esforço sistemático de ocultação de provas da Nakba.

 O fenómeno foi detectado, pela primeira vez, pelo Instituto Akevot para Investigação do Conflito Israel-Palestina. De acordo com um relatório elaborado por este instituto, esta operação é liderada pelo Malmab, sigla em hebraico para Departamento Secreto de Segurança do Ministério da Defesa, cujas atividades e orçamento são confidenciais. O relatório afirma que Malmab removeu os documentos históricos ilegalmente e sem autoridade para tal e, pelo menos em alguns casos, selou documentos, que tinham sido libertados previamente, pelo censor militar, para publicação. Alguns dos documentos que foram colocados em cofres já tinham sido publicados no passado.

 Uma investigação do Haaretz descobriu que Malmab escondeu o testemunho dos generais das Forças de Defesa de Israel sobre a morte de civis e a demolição de aldeias, bem como os documentos sobre a expulsão de beduínos durante a primeira década do estado. Conversas, conduzidas pelo Haaretz, com directores de arquivos públicos e privados revelaram que a equipa do Departamento de Segurança tinha tratado os arquivos como sua propriedade, em alguns casos ameaçando os próprios directores.

 Yehiel Horev, que liderou Malmab ao longo de duas décadas até 2007, reconheceu ter lançado este projeto, que ainda está em curso. Afirma que faz sentido esconder os acontecimentos de 1948, pois revelá-los poderia gerar desassossego entre a população árabe do país. Questionado sobre a remoção de documentos que já foram publicados, explicou que o objetivo desse comportamento é pôr em causa a credibilidade dos estudos sobre a história do problema dos refugiados. Na opinião de Horev, uma alegação feita por um pesquisador sustentada por um documento original, não é o mesmo que uma alegação que não pode ser provada ou atestada.

O documento que Novick procurava poderia ter reforçado o trabalho de Morris. Durante a investigação, Haaretz conseguiu encontrar o memorando de Aharon Cohen, resumo de uma reunião do Comité Político de Mapam, sobre o tema dos massacres e expulsões em 1948. Os participantes da reunião pediram cooperação, através de uma comissão de inquérito que investigaria os eventos. Um dos casos que o comité discutiu dizia respeito a “acções graves” realizadas na aldeia de Al-Dawayima, a leste de Kiryat Gat. Um participante mencionou, neste contexto, a milícia clandestina de Lehi, dissolvida mais tarde. Actos de saque também foram relatados: “Lod e Ramle, Be’ers Sheva, não há uma loja [árabe] que não tenha sido invadida. 9ª Brigada diz 7, 7ª Brigada diz 8.”

“O partido”, afirma o documento perto do final, “é contra a expulsão, se não houver necessidade militar para tal. Existem diferentes abordagens sobre a avaliação da necessidade. E é preciso mais esclarecimentos. O que aconteceu na Galileia são actos nazis! Cada um dos nossos membros deve relatar o que sabe.”

 A versão israelita

Um dos documentos mais fascinantes sobre a origem do problema dos refugiados palestinianos foi escrito por um oficial em Shai, o precursor do serviço de segurança do Shin Bet. Este discute o porquê de o país ter sido esvaziado de tantos dos seus habitantes árabes, enfatizando as circunstâncias de cada aldeia. Compilado no final de Junho de 1948, foi intitulado “A Emigração dos Árabes da Palestina”. (O documento traduzido para inglês)

 Este documento serviu de base a um artigo que Benny Morris publicou em 1986. Depois de o artigo ser publicado, o documento foi removido do arquivo e tornado inacessível aos investigadores. Anos depois, a equipa de Malmab reexaminou o documento e ordenou que ele permanecesse confidencial. Não imaginavam, porém, que, alguns anos depois, os investigadores de Akevot viriam a encontrar uma cópia do texto e a submeteriam à análise dos censores militares – que autorizaram a sua publicação de forma incondicional. Agora, anos depois da sua ocultação, a essência do documento é aqui revelada.

 O documento de 25 páginas começa com uma introdução que corrobora a evacuação das aldeias árabes. Segundo o autor, o mês de Abril testemunhou “um aumento da emigração”, enquanto o mês de Maio “foi abençoado com a evacuação do máximo de lugares”. O relatório aborda então “as causas da emigração árabe”. Segundo a narrativa israelita, difundida ao longo dos anos, a responsabilidade para o exílio de Israel recai sobre os políticos árabes que encorajaram a população a sair. No entanto, de acordo com este documento, 70% dos árabes saíram como resultado de operações militares judaicas.

 O autor, não identificado, do texto coloca as razões para a saída dos árabes por ordem de importância. A primeira razão: “Actos judaicos directos de hostilidade contra as localidades árabes”. A segunda, o impacto dessas ações nas aldeias vizinhas. Em terceiro lugar de importância, vieram as “operações dos separatistas”, ou seja, pelos grupos Irgun e Lehi. A quarta razão para o êxodo dos árabes foram as ordens emitidas por instituições árabes e “gangues” (forma como o documento se refere a todos os grupos árabes de luta); a quinta foram “Os actos judeus de espalhar boatos para induzir os habitantes árabes a fugir ”; e a sexta os “ultimatos de evacuação”.

Crianças palestinianas a aguardar distribuição de leite pela UNICEF no convento das Irmãs Franciscanas de Nazaré, no 1º de janeiro de 1950. AW / UN
Crianças palestinianas a aguardar distribuição de leite pela UNICEF no convento das Irmãs Franciscanas de Nazaré, no 1º de janeiro de 1950. AW / UN

 O autor afirma que, “sem dúvida, as operações hostis foram a principal causa para a saída da população”. Além disso, “os altifalantes em língua árabe provaram a sua eficácia nas ocasiões em que foram utilizados adequadamente”. Quanto à Irgun e às operações de Lehi, o relatório relata que “muitas das aldeias da região central da Galileia começaram a fugir após o rapto dos notáveis do xeque Muwannis [uma vila a norte de Tel Aviv]. Os árabes aprenderam que não é suficiente ter um acordo com a Hagana e que existem outros judeus [isto é, as milícias separatistas] de quem é preciso ter cuidado”.

 O autor relata que os ultimatos de evacuação foram especialmente utilizados no centro da Galileia e menos na região do Monte Gilboa. “Naturalmente que, o ultimato, elaborado como um ‘conselho amigável’, é posterior a uma certa preparação no terreno por meio de acções hostis na zona.”

Um apêndice do documento descreve as causas específicas do êxodo de cada uma das dezenas de localidades árabes: Ein Zeitun – “nossa destruição da aldeia”; Qeitiya – “assédio, ameaça de reagir”; Almaniya – “nossa acção, muitos mortos”; Tira – “conselho judaico amigável”; Al’Amarir – “depois de roubos e homicídios cometidos pelos separatistas”; Sumsum – “nosso ultimato”; Bir Salim – “ataque ao orfanato”; e Zarnuga – “conquista e expulsão”.

 Curto circuito

No início do milénio, o Centro Yitzhak Rabin realizou uma série de entrevistas com ex-figuras públicas e militares, como parte de um projeto para documentar as suas actividades ao serviço do Estado. O longo braço de Malmab também se baseou nessas entrevistas. O Haaretz, que obteve os textos originais de várias das entrevistas, comparou-as às versões que estão agora disponíveis ao público, após grande parte delas terem sido declaradas confidenciais.

Estas incluem, por exemplo, partes do testemunho do Brigadeiro General (res.) Aryeh Shalev sobre a expulsão, ao longo da fronteira, dos habitantes de uma aldeia que ele chamou de “Sabra”. Mais tarde, na entrevista, as seguintes frases foram excluídas: “Havia um problema muito sério no vale. Havia refugiados que queriam regressar ao vale, ao Triângulo [uma concentração de cidades e aldeias árabes no leste de Israel]. Nós expulsámo-los. Encontrei-me com eles para convencê-los a mudar de opinião. Tenho documentos sobre isso.

 Outro exemplo revela-se quando Malmab decidiu ocultar o seguinte trecho da entrevista que o historiador Boaz Lev Tov conduziu ao Major-General (res.) Elad Peled:

 Lev Tov: “Estamos a falar de uma população – mulheres e crianças?”

Peled: “Todos, todos. Sim.”

Lev Tov: “Não se faz distinção entre eles?”

Peled: “O problema é muito simples. A guerra é entre duas populações. Eles saíram da casa deles.”

Lev Tov: “Se a casa existir, eles têm algum lugar para voltar?”

Peled: “Não são exércitos ainda, são gangues. Nós também somos gangues. Saímos das casas e voltámos. Eles saem das casas e voltam. As casas ou são deles ou são nossas.

Lev Tov: “A geração mais nova preocupa-se com isto?”

Peled: Sim. Hoje, quando me sento numa poltrona aqui e penso no que aconteceu, todo o tipo de pensamentos me vêm à mente”.

Lev Tov: “Não foi sempre assim, então?”

Peled: “Olhe, deixe-me dizer algo cruel e ainda menos agradável, sobre a grande invasão em Sasa [aldeia palestiniana na Alta Galileia]. O objetivo era realmente dissuadi-los, dizendo-lhes: “Queridos amigos, o Palmach [as tropas de choque da Haganah] podem chegar a todo o lado, vocês não estão imunes”. Esse era o coração da população árabe. Mas, que fizemos nós? O meu pelotão explodiu 20 casas com tudo o que estava lá dentro.

Lev Tov: “Enquanto as pessoas lá dormiam?”

Peled: “Suponho que sim. O que aconteceu foi, chegámos, entrámos na aldeia, plantámos uma bomba ao lado de cada casa e depois Homesh tocou a trombeta, uma vez que não tínhamos rádios. Esse era o sinal [para as nossas forças] para sair. Corremos no sentido contrário, os sapadores ficaram, tudo era primitivo na altura. Estes acendiam o fusível ou puxavam o detonador e todas as casas desapareciam.”

 Outro excerto que o Ministério da Defesa queria manter longe do público surgiu na conversa do Dr. Lev Tov com o Major General Avraham Tamir:

 Tamir: “Eu estava sob o comando de Chera [Major General Tzvi Tzur, mais tarde Chefe de Gabinete das Forças de Defesa de Israel], e tinha excelentes relações de trabalho com ele. Ele deu-me liberdade de acção, e, por acaso, eu era responsável pelo trabalho de equipa e pelas operações durante dois dos desenvolvimentos que resultaram da política de [Primeiro Ministro David] Ben-Gurion. Um dos desenvolvimentos deu-se quando chegaram os relatórios sobre as marchas de refugiados da Jordânia para as aldeias abandonadas. Com estes Ben-Gurion implementou a política de demolição [das aldeias] para que não tivessem para onde voltar. Fê-lo em todas as aldeias árabes, a maioria das quais estavam [na área] sob o Comando Central.”

Lev Tov: “Aquelas que ainda estavam de pé?”

Tamir: “As que ainda não tinham sido habitadas por israelitas. Havia lugares onde já tínhamos inserido israelitas, como Zakariyya e outras terras. Mas a maioria delas ainda eram aldeias abandonadas.

Lev Tov: “Que estavam de pé?”

Tamir: “De pé. Era necessário que não houvesse lugar para eles voltarem, por isso mobilizei todos os batalhões de engenharia do Comando Central e, no espaço de 48 horas, demoli todas aquelas aldeias. Ponto. Não haveria lugar para onde voltar.

Lev Tov: “Sem hesitação, imagino.”

Tamir: “Sem hesitação. Essa foi a política. Mobilizei as forças, fiz o trabalho e acabou”.

Soldados das Forças de Defesa de Israel em Ramle, no ano de 1948. Coleção de Benno Rothenberg/ Arquivo das Forças de Defesa de Israel
Soldados das Forças de Defesa de Israel em Ramle, no ano de 1948. Coleção de Benno Rothenberg/ Arquivo das Forças de Defesa de Israel

 Caixas em cofres

A arrecadação do Centro de Documentação e Pesquisa Yad Yaari fica numa cave. No cofre, que é na verdade uma sala pequena e bem protegida, há pilhas de caixas com documentos confidenciais. O arquivo abriga os materiais do movimento Hashomer Hatzair, o movimento de Kibbutz Ha’artzi, de Mapam, de Meretz e de outras entidades, como a Peace Now.

 O director do arquivo é Dudu Amitai, que também é presidente da Associação de Arquivistas de Israel. De acordo com Amitai, o pessoal de Malmab visitou o arquivo, regularmente, entre 2009 e 2011. Os funcionários do arquivo dizem que as equipas do Departamento de Segurança – dois aposentados do Ministério da Defesa sem treino de arquivo – apareciam duas ou três vezes por semana. Eles procuravam documentos com palavras-chave como “nuclear”, “segurança” e “censura”, assim como também dedicavam um tempo considerável à Guerra da Independência e ao destino das aldeias árabes pré-1948.

 “No final, enviaram um resumo para nós, dizendo que tinham localizado algumas dúzias de documentos confidenciais”, diz Amitai. “Geralmente, não separamos ficheiros. Logo, dezenas de arquivos, na íntegra, chegaram ao nosso cofre e foram removidos do catálogo público”. Um arquivo pode conter mais de 100 documentos.

 Um dos arquivos que foi selado está relacionado com o governo militar que controlava as vidas dos cidadãos árabes de Israel, desde 1948 até 1966. Durante anos, os documentos foram armazenados no mesmo cofre, inacessíveis aos investigadores. Recentemente, na sequência de uma solicitação do professor Gadi Algazi, Historiador da Universidade de Tel Aviv, Amitai examinou o arquivo pessoalmente e chegou à conclusão de que não havia razão para não divulgá-lo, apesar da opinião do Malmab.

 De acordo com Algazi, pode haver várias razões para o Malmab ter decidido manter o arquivo confidencial. Uma delas está relacionada com um anexo secreto que contém um relatório de um comité que examinou o funcionamento do governo militar. O relatório refere-se, quase na íntegra, às batalhas de propriedade da terra entre o Estado e os cidadãos árabes, e quase não faz referência a questões de segurança.

 Outra possibilidade é a existência de um relatório de 1958 do comité ministerial que supervisionou o governo militar. Num dos apêndices secretos deste relatório, o Coronel Mishael Shaham, um oficial sénior do governo militar, explica que uma das razões para não desmantelar o aparato da lei marcial é a necessidade de restringir o acesso dos cidadãos árabes ao mercado de trabalho e impedir a restauração das aldeias destruídas.

Uma terceira explicação possível para esconder o arquivo diz respeito aos testemunhos históricos inéditos sobre a expulsão de beduínos. Na véspera do estabelecimento de Israel, quase 100.000 beduínos viviam no Negev. Três anos depois, o seu número caiu para 13.000. Nos anos durante e após a Guerra da Independência, várias operações de expulsão foram realizadas no sul do país. Em um dos casos, observadores da ONU relataram que Israel expulsou 400 beduínos da tribo Azazma e citou testemunhos sobre tendas queimadas. A carta que aparece no arquivo secreto descreve uma expulsão similar realizada em 1956, como relatado pelo geólogo Avraham Parnes:

A Evacuação do Iraque al-Manshiyya, perto da chamada, nos dias de hoje, Kiryat Gat, em Março de 1949. Colecção de Benno Rothenberg / Arquivo das Forças de Defesa de Israel
A Evacuação do Iraque al-Manshiyya, perto da chamada, nos dias de hoje, Kiryat Gat, em Março de 1949. Colecção de Benno Rothenberg / Arquivo das Forças de Defesa de Israel

 “Há um mês atrás visitámos Ramon. Os beduínos, da região de Mohila, vieram até nós com os seus rebanhos e as suas famílias e disseram-nos para comermos pão com eles. Eu respondi que tínhamos muito trabalho para fazer e não tínhamos tempo. Na nossa visita, esta semana, fomos, novamente, em direção à Mohila. Em vez dos beduínos e dos seus rebanhos, encontrámos um silêncio mortal. Dezenas de carcaças de camelos foram espalhadas na área. Viemos a saber que, três dias antes, as Forças de Defesa de Israel tinham “lixado” os beduínos e os seus rebanhos tinham sido abatidos – os camelos foram baleados e as ovelhas atingidas com granadas. Um dos beduínos, que começou a reclamar, foi morto, os restantes fugiram.”

 O testemunho continuou: “Duas semanas antes tinham recebido ordens para ficar onde estavam por enquanto, depois receberam ordens para sair. Para acelerar o processo, 500 cabeças de gado foram abatidas… A expulsão foi executada ‘eficientemente’.” A carta segue citando o que um dos soldados disse a Parnes. De acordo com o seu testemunho: “Eles não se vão embora, a menos que acabemos com os seus rebanhos. Uma jovem, de cerca de 16 anos, aproximou-se de nós. Tinha um colar de contas de cobras de latão. Arrancámos o colar e cada um de nós ficou com uma conta como recordação.”

 A carta foi originalmente enviada ao Membro do Knesset Yaakov Uri, de Mapai, que a transmitiu ao Ministro do Desenvolvimento, Mordechai Bentov (Mapam). “A sua carta chocou-me”, escreveu Uri a Bentov. Este último circulou a carta entre todos os ministros, escrevendo: “Na minha opinião o Governo não pode, simplesmente, ignorar os factos relatados na carta.” Bentov acrescentou que, à luz do terrível conteúdo da carta, pediria a especialistas em segurança para verificarem a sua credibilidade. Estes confirmaram que o conteúdo “de facto, em modo geral, está em conformidade com a verdade”.

 Desculpa nuclear       

Foi durante o mandato do historiador Tuvia Friling como Chefe dos arquivos de Israel de 2001 a 2004, que o Malmab realizou as suas primeiras incursões arquivísticas. O que começou como uma operação para evitar deixar escapar segredos nucleares, tornou-se, com o tempo, num projeto de censura em grande escala.

 “Demiti-me depois de três anos, e essa foi uma das razões”, diz Prof. Friling. “A confidencialidade imposta nos documentos sobre a emigração dos árabes em 1948 é precisamente um dos exemplos pelos quais estava apreensivo. O sistema de armazenamento e arquivo não é um ramo das relações públicas do Estado. Se há algo que alguém não gosta, bem, é a vida. Uma sociedade saudável também aprende com os seus erros”.

 Porque é que Friling permitiu que o Ministério da Defesa tivesse acesso aos arquivos? A razão, como o próprio diz, era a intenção de tornar público material de arquivo via internet. Em discussões sobre as implicações da digitalização do material, o Ministério expressou a sua preocupação sobre a publicação de referências a “determinados tópicos”, por engano, nos documentos. Os tópicos, são, claramente, o projeto nuclear de Israel. Friling insiste que a única autorização que o Malmab recebeu foi a de procurar documentos sobre este assunto.

 Mas a actividade do Malmab é apenas um exemplo de um problema mais amplo, refere Friling: “Em 1998, a confidencialidade dos documentos mais antigos nos arquivos, de Shin Bet e Mossad, expirou. Durante anos, estas duas instituições desrespeitaram o Chefe dos arquivos. Quando assumi o meu cargo, pediram-me que a confidencialidade de todo o material fosse estendida [de 50] a 70 anos, o que é ridículo – a maior parte do material tem que estar aberto aos investigadores”.

 Em 2010, o período de confidencialidade foi estendido para 70 anos; em fevereiro passado foi prorrogado novamente para 90 anos, apesar da oposição do Conselho Supremo de Arquivos. “O Estado pode impor confidencialidade em alguns documentos”, diz Friling. “A pergunta é se a questão da segurança não servirá apenas como desculpa. Em muitos casos, isto já se torna uma comédia”.

 Na opinião de Dudu Amitai da Yad Yaari, o sigilo imposto pelo Ministério da Defesa deve ser questionado. Quando estava no cargo, como conta, um dos documentos colocados no cofre era uma ordem emitida, durante uma trégua na Guerra da Independência, por um General das Forças de Defesa de Israel, para que as suas tropas se abstivessem de violações e roubos. Agora, Amitai pretende examinar os documentos que foram depositados no cofre, especialmente documentos de 1948, e abrir o que for possível. “Faremos, com cautela e responsabilidade, mas reconhecendo que o Estado de Israel precisa aprender a lidar com os aspectos menos agradáveis da sua História”.

 Ao contrário de Yad Yaari, onde o pessoal do Ministério já não realiza as visitas, em Yad Tabenkin, centro de pesquisa e documentação do Movimento dos Kibutzes Unidos, continuam a examinar documentos. O Diretor, Aharon Azati, chegou a um acordo com as equipas do Malmab, à luz do qual os documentos só seriam transferidos para o cofre se ele estivesse convencido de que isso se justificava. Também aqui, em Yad Tabenkin, o Malmab ampliou as suas buscas para além do âmbito do projeto nuclear, para abranger entrevistas conduzidas por funcionários de arquivos com ex-membros do Palmach, e chegou mesmo a examinar o material sobre a história dos colonatos nos territórios ocupados.

Malmab mostrou interesse, por exemplo, no livro de língua hebraica “Uma Década de Silenciamento: Política de Colonização nos Territórios 1967-1977”, escrito por Yehiel Admoni, Diretor do Departamento da Agência Judaica para a colonização, sobre a década indicada, publicado por Yad Tabenkin em 1992. Este livro menciona um plano para transferir refugiados palestinianos do Vale do Jordão e para desenraizar 1.540 famílias beduínas da área de Rafah, na Faixa de Gaza, em 1972, referindo uma operação que incluía a vedação de poços pelas Forças de Defesa de Israel. Ironicamente, no caso dos beduínos, Admoni cita o ex-ministro da Justiça Yaakov Shimshon Shapira, dizendo: “Não é necessário estender o raciocínio de segurança longe demais. Todo o episódio beduíno não é um capítulo glorioso para o Estado de Israel”.

 Segundo Azati, “estamos a caminhar, cada vez mais, para um aperto. Embora esta seja uma era de abertura e transparência, aparentemente há forças que estão a puxar na direção oposta”.

Refugiados Palestinianos a sair da sua vila, lugar desconhecido, 1948, UNRWA
Refugiados Palestinianos a sair da sua vila, lugar desconhecido, 1948, UNRWA

 Sigilo não autorizado

Há cerca de um ano, a Assessora Jurídica do Arquivo Estatal, a advogada Naomi Aldouby, escreveu um artigo de opinião intitulado “Ficheiros Escondidos, sem Autorização, em Arquivos Públicos”. Segundo ela, a política de acessibilidade aos arquivos públicos é de competência exclusiva do diretor de cada instituição.

 Apesar da opinião de Aldouby, na grande maioria dos casos, os arquivistas que enfrentaram decisões não razoáveis do Malmab não levantaram objeções. Não até 2014, quando o staff do Ministério da Defesa chegou ao arquivo do Instituto de Pesquisa Harry S. Truman, na Universidade Hebraica de Jerusalém. Para surpresa dos visitantes, o pedido para examinar o arquivo – que contém coleções do ex-ministro e diplomata Abba Eban e do Major General Shlomo Gazit – foi recusado pelo então Diretor, Menahem Blondheim.

 De acordo com as palavras de Blondheim: “Disse-lhes que os documentos em questão tinham décadas e que não acreditava que houvesse algum problema de segurança que justificasse restringir o seu acesso aos investigadores”. Em resposta, disseram: “Digamos que, e se houver um testemunho de que os poços foram envenenados na Guerra da Independência?”. Ao que Blondheim respondeu: “Bom, nesse caso, essas pessoas devem ser levadas a julgamento”.

 A recusa de Blondheim levou a uma reunião com um oficial de hierarquia superior do Ministério, só que, desta vez, a atitude que encontrou foi diferente, recebendo ameaças explícitas. Por fim, os dois lados chegaram a um acordo.

 Benny Morris não ficou surpreendido com a actividade do Malmab. “Eu sabia disso”, diz ele. “Não oficialmente, ninguém me informou, mas eu percebi quando descobri que documentos que eu tinha visto no passado agora estão selados. Há documentos do Arquivo das Forças de Defesa de Israel que usei para um artigo sobre Deir Yassin, que agora estão selados. Quando cheguei ao arquivo, já não tinha permissão para ver o original. Então coloquei numa nota de rodapé [no artigo] que o Arquivo do Estado me tinha negado o acesso a documentos que eu tinha publicado há 15 anos”.

 O caso Malmab é apenas um exemplo da batalha que está a ser travada para se poder aceder a arquivos em Israel. De acordo com o director executivo do Instituto Akevot, Lior Yavne, “O Arquivo das Forças de Defesa de Israel, o maior arquivo de Israel, está quase hermeticamente selado. Apenas cerca de 1% do material está aberto. O arquivo do Shin Bet, que contém materiais de imensa importância [para investigadores], está totalmente fechado, à excepção de meia dúzia de documentos.”

 Após a sua reforma, Yaacov Lozowick, anterior chefe nos Arquivos do Estado, escreveu um artigo no qual refere o controlo da instituição de defesa sobre os materiais de arquivo do país. Neste, ele escreve: “Uma democracia não deve esconder informação, pois assim será responsável pelo prejuízo do Estado. Na prática, a instituição de segurança de Israel e, em certa medida, a das relações externas também, estão a interferir na discussão [pública].”

 Defensores da ocultação apresentam vários argumentos, como refere Lozowick: “Tornar os factos de domínio público poderia fornecer aos nossos inimigos um argumento contra nós, enfraquecendo a determinação dos nossos amigos; poderia agitar a população árabe; poderia enfraquecer os argumentos do Estado nos tribunais de justiça; e os factos revelados poderiam ser interpretados como crimes de guerra israelita”. Alegando também que: “Todos esses argumentos devem ser rejeitados. Esta é uma tentativa de esconder parte da verdade histórica, para construir uma versão mais conveniente”.

 O que diz Malmab?

Yehiel Horev foi o guardião dos segredos da instituição de segurança durante mais de duas décadas. Chefiou o departamento de segurança do Ministério da Defesa de 1986 a 2007 e, naturalmente, manteve-se longe dos holofotes. Para seu bem, agora, concordou falar, de forma franca, ao Haaretz, sobre o projecto dos arquivos.

 “Não me lembro de quando começou”, diz Horev, “mas sei que fui eu que iniciei o projecto. Se não me engano, começou quando as pessoas quiseram publicar documentos dos arquivos. Tivemos que montar equipas para examinar todo o material que iria sair.”

 A partir de conversas com directores de arquivo, ficou claro que uma boa parte dos documentos sobre os quais foi imposta a confidencialidade está relacionada com a Guerra da Independência. Esconder os eventos de 1948 é parte do plano do Malmab?

 “O que significa ‘parte do plano’? O assunto é examinado com base no que poderia ser prejudicial para as relações exteriores de Israel e também para a sua defesa. Esses são os critérios. Acho que ainda é relevante. Não há paz desde 1948. Posso estar errado, mas, tanto quanto sei, o conflito israelo-árabe não foi resolvido. Então, sim, pode ser que os assuntos problemáticos permaneçam”.

 Questionado sobre como tais documentos podem ser problemáticos, Horev fala da possibilidade de agitação entre os cidadãos árabes do país. Do seu ponto de vista, todos os documentos devem ser lidos e , caso a caso, serem tomadas as decisões.

 Se os eventos de 1948 não fossem conhecidos, poderíamos discutir se essa abordagem é a correcta. Mas não é este o caso. Muitos testemunhos e estudos têm surgido sobre a história do problema dos refugiados. Qual é o sentido de esconder os assuntos?

Refugiados palestinianos na área de Ramle, 1948. Boris Carmi / Arquivos das Forças de Defesa de Israel
Refugiados palestinianos na área de Ramle, 1948. Boris Carmi / Arquivos das Forças de Defesa de Israel

 “A questão é saber se pode, ou não, causar problemas. É um assunto muito sensível. Nem tudo foi publicado sobre a questão dos refugiados, e existe todo o tipo de narrativas. Algumas dizem que não houve fuga, apenas expulsão. Outras dizem que houve fuga. Não é preto e branco. Há uma diferença entre a fuga e aqueles que dizem que foram expulsos à força. São cenários diferentes. Não posso dizer, agora, se merece total confidencialidade, mas é um assunto que, definitivamente, precisa ser discutido antes de qualquer decisão, sobre o que publicar, ser tomada.”

 Durante anos, o Ministério da Defesa impôs a confidencialidade de um documento detalhado que descreve as razões da partida daqueles que se tornaram refugiados. Benny Morris já escreveu sobre o documento. Então, qual a lógica em mantê-lo oculto?

 “Não me lembro do documento que você está a referir. Mas se ele o citou e o documento em si não está lá [isto é, onde Morris diz que está], os argumentos dele não são fortes. Se ele afirmar: “Sim, eu tenho o documento”, não posso argumentar. Mas se ele apenas disser que “está lá escrito”, isso pode estar certo como também pode estar errado. Se o documento já esteve fora e agora está selado no arquivo, diria que isso é uma estupidez. Mas se alguém o citou – existe uma diferença do dia para a noite, no que diz respeito à validade  das provas por ele citadas”.

 Neste caso, estamos a falar sobre o investigador mais citado quando se trata de assuntos relacionados com os refugiados palestinianos.

 “Dizer ‘investigador’ não me impressiona. Conheço pessoas no meio académico que só dizem disparates sobre assuntos que eu conheço de A a Z. Quando o Estado impõe a confidencialidade, o trabalho publicado fica enfraquecido, já que ele não tem o documento.”

 Mas não será esconder documentos, mencionados em notas de rodapé de livros, uma tentativa de trancar a porta do estábulo depois de os cavalos já terem fugido?

 “Eu dei-lhe um exemplo, isso não quer dizer, necessariamente, que seja o caso. Se alguém escrever que o cavalo é preto, se este não estiver fora do celeiro, não tem como provar que ele é realmente preto.”

 Existem opiniões legais que declaram que a actividade do Malmab nos arquivos é ilegal e não autorizada.

 “Se eu souber que um arquivo contém material confidencial, tenho o poder de dizer à polícia para ir lá e confiscar o material. Eu também posso utilizar os tribunais. Eu não preciso da autorização do arquivista. Se houver material confidencial, tenho autoridade para agir. Há política específica. Os documentos não são selados sem motivo. No entanto, apesar de tudo, não lhe vou dizer que tudo o que é selado é 100% justificado.”

 O Ministério da Defesa recusou-se a responder a perguntas específicas sobre as conclusões desta reportagem, respondendo apenas: “O director de segurança da instituição de defesa opera em virtude da sua responsabilidade em proteger os segredos do Estado e das suas propriedades relacionadas com a segurança. O Malmab não fornece detalhes sobre o seu modo de operar ou as suas missões”.

Enterrando a Nakba

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